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O eterno retorno da ignorância / crítica do espetáculo Quando as Pessoas Andam em Círculos

  • Pedro Alonso
  • 6 de nov. de 2019
  • 4 min de leitura

Atualizado: 2 de dez. de 2019

Na dramaturgia da segunda metade do século XIX, os autores nacionais de prestígio, como José de Alencar, por exemplo, atuaram na cena teatral brasileira, produzindo textos que colocavam em pauta questões muito caras à sociedade naquele momento histórico: o casamento por interesse, a prostituição, a família, a honra, a propriedade, assuntos que a burguesia almejava ver retratado em cena, de maneira civilizada, que não ferisse, nunca jamais, a moral, a Igreja e a ordem estabelecida.


Aquele grupo de intelectuais havia se imbuído de uma missão maior que apenas escrever peças para divertir platéias: eles se empenharam em educar pelo exemplo, criando situações para que seus personagens pudessem se tornar modelos que se mostrassem à altura de uma sociedade equilibrada e razoável, permitindo aos espectadores, que ocupavam acento nas plateias, que saíssem, das salas dos teatros, com o espírito melhor do que entraram. Porém o próprio Alencar não escapou da censura. Seu espetáculo As Asas de um Anjo foi retirada de cena, pela polícia, por ser considerada uma peça imoral.


Hoje, a ordem do mundo mudou do avesso, mas o teatro nunca deixou de discutir os problemas do seu tempo. Vivendo a plenitude do século XXI, outros temas adentraram violentamente pelos palcos da contemporaneidade, exigindo tomadas de posicionamento mais radicais, na forma e no conteúdo: as questões de ordem política voltaram a fazer parte fazer dos repertórios das companhias, com muito mais ênfase, desde as manifestações de 2013, quando os grupos se atentaram para os riscos de enfraquecimento da ordem democrática, orquestradas pela extrema-direita. Mas parece que outros dois elementos, que estavam já enterrados no limbo do esquecimento, pelo menos desde o fim da ditadura militar, retornaram com mais força, pegando carona nesses tempos sonsos e cínicos: a velha moral anacrônica e a censura, novamente ela, aterrorizando hoje quem depende dos editais de cultura para trabalhar.


Imagem do espetáculo Quando as Pessoas Andam em Círculos. Fotos cedidas pela produção
Imagem do espetáculo Quando as Pessoas Andam em Círculos. Fotos cedidas pela produção

As pautas reivindicatórias de indivíduos, que tiveram suas vozes caladas por séculos, persistem ocupando os espaços cênicos, com o objetivo de provocar reflexão diante do quadro alarmante de mortes e execuções de negros jovens, principalmente dos que moram em áreas de risco; de homossexuais que enfrentam a ira de uma sociedade, por trocarem afetos em público, e de mulheres que são vítimas de bullyng, ou por não terem o corpo perfeito, ou por estarem expostas a todo tipo de violência física e moral, provocados por homens héteros, de maioria branca e que não admitem que suas vontades não sejam correspondidas, mais conhecidos, também, como babacas.


Esses são alguns tipos que transitam pelo palco do teatro 2 do Centro Cultural Banco do Brasil, que apresenta o espetáculo Quando as Pessoas Andam em Círculos, a nova criação da Artesanal Cia de Teatro, que, graças a todo tipo de sorte da natureza, não sofreu retaliação por parte da instituição bancária, a mesma que censurou a curta temporada do espetáculo Caranguejo Overdrive recentemente, sem sequer explicar os motivos.

O texto de Daniel Belmonte e Gustavo Bicalho reúne em cena seis jovens que estão na expectativa de uma festa que irá acontecer numa boate: o nerd que sofre de ansiedade; a gordinha que sabe de cor o catálogo de remédios para perda de peso; a loira esbelta e linda; o homossexual; o negro e o provocador dos bullyngs. Enquanto o evento não começa, cada um deles expõe um tipo de medo, de excitação, de anseio e de desejo, ora dialogando com os personagens, ora em monólogos direcionados para a plateia.


No entanto, parece que alguma coisa sinistra está prestes a acontecer naquela local, que acarretará num desfecho de proporções trágicas: alguém, fantasiado de coelho, com o rosto coberto por uma grande máscara, é visto entrando na boate com uma arma na mão. Os motivos que levam esse jovem a cometer assassinato são irrelevantes. O foco principal aqui é a denúncia que a dramaturgia quer compartilhar com a plateia sobre esse mundo estranho, que cada vez mais empurra o individuo para os braços da ansiedade, da vontade de cometer suicídio, de instigar a população a portar armas e mirar nos supostos “inimigos públicos” da nação, alimentados por discursos de ódio de entes que ocupam cargos bem elevados nas instituições nacionais.


Imagem do espetáculo Quando as Pessoas Andam em Círculos. Fotos cedidas pela produção
Imagem do espetáculo Quando as Pessoas Andam em Círculos. Fotos cedidas pela produção

Os diálogos da peça possuem o teor de um didatismo, que é próprio de dramaturgias de caráter eminentemente social e político. Os atores Bruno Jablonski, Ciro Acioli, Gabriel Rochlin, Igor Orlando, Isis Pessino, Julia Bruck Leonardo Bianchi e Mag Pastori interpretam personagens esquemáticos. Seus dramas são mais coletivos que individuais. No entanto, as ações não descambam para o estereótipo, que poderia empobrecer o conjunto e alçar o “politicamente correto” num teor artificial e chato. O discurso do “Negão”, ao se apresentar para os espectadores, desponta com um questionamento metateatral: que os autores não deram um nome para ele, e é o único ator negro, dentre os demais, que é chamado pelo apelido, generalizando-o. Em outra cena, enquanto a gordinha provoca um vômito fora da festa, o Negão chega para ajudá-la. Ela não apenas nega, como também o afasta, agredindo-o verbalmente com expressões de teor racista.


A direção de Gustavo Bichalho e Henrique Gonçalves é plástica e esteticamente visual. A preparação dos atores, a cargo de Paulo Mazzoni coopera com o rigor para a composição do quadro. A iluminação, o show de luzes da boate, a seleção das músicas tornam o ambiente sedutor e atraente, dando o contraponto ao vazio que alguns dos protagonistas sentem ao estarem ali, recorrendo ao artifício da tecnologia, das redes sociais, das fotos tiradas que imprimem uma falsa sensação de felicidade.


Os temas que são abordados no espetáculo são de conhecimento do público que acompanha as lutas dos movimentos feminista, negro e LGBT. Felizmente o CCBB não suspendeu a apresentação dessa peça. Felizmente o público poderá assistir, até o final desse mês, a montagem da Artesanal e se identificar com os dramas que aqueles jovens precisam conviver diariamente. O que as instituições de fomento à cultura não podem é ficar andando em círculos, selecionando ou retirando de pauta obras que seguem determinado víeis ideológico e moral. Isso é um escândalo e saímos todos perdendo com isso.

 
 
 

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