Teatro com T de testosterona - crítica do espetáculo Bill Dog 2
- Pedro Alonso
- 3 de mar. de 2020
- 3 min de leitura
Palavras- chave: CCBB, Bill Dog, Gustavo Rodrigues, Joe Bone, Aurélio De Simoni
Bill Dog 2: o monstro dentro dele consiste na segunda peça da trilogia, escrita pelo autor e ator inglês Joe Bone, e que chegou em terras brasileiras pelas mãos, corpo, voz, suor e alma do ator e tradutor do texto Gustavo Rodrigues, que se desdobra em, pelo menos, quarenta personagens, segundo consta no programa da peça, mas que nos causa a sensação de muito mais no decorrer da montagem.
O texto de Bone reúne um vasto leque de referências da cultura pop mundial, baseado na violência dos quadrinhos, dos filmes de ação e da estética noir. O protagonista, anti-herói por excelência, é atraído para uma emboscada: ele deve ser morto e o escolhido para executá-lo é seu ex-colega de infância. Como o intento não surte efeito, Bill deveria dar cabo de quem traiu sua confiança, no entanto, é bloqueado por uma espécie de memória afetiva, deixando o amigo ingrato fugir, porém, com alguns dedos da mão a menos.
Existe um embate ético que coloca o protagonista em apuros: um matador de aluguel, sanguinário e sem piedade com quem quer que seja, se descobre ser capaz de nutrir sentimentos dos quais não deveria, o que o torna totalmente vulnerável a falhar em outras missões futuras. O ato de ter deixado o inimigo vivo se desdobra numa espécie de frustração, que só terá seus efeitos atenuados quando Bill Dog entra numa loja e comete uma chacina, liquidando quem estiver ali dentro, num ato paradoxal, próprio da linguagem irônica que permeia o texto inteiro, o que faz com que seu chefe o obrigue a se tratar com um psiquiatra: o monstro será forçado a se deitar no divã.
A iluminação de Aurélio de Simoni é responsável por evocar, metonimicamente, o espaço e a atmosfera sombria do submundo das grandes cidades. O desenho de luz acompanha o frenesi do personagem, inserindo-o numa espécie de dupla prisão: a primeira, monocromática, tal qual a página de uma graphic novel, com suas linhas e tonalidades expressionistas, ajudam a comprimir ou expandir a cena, como se cada foco de refletor correspondesse ao enquadramento de uma figura em sequência; e a segunda, de caráter lisérgico, quando as cores inundam o pesadelo de Bill Dog, decorrente dos fortes medicamentos prescritos pelo psicanalista, e o surto se confunde com a intensidade de um concerto de rock, maravilhosamente executado ao vivo.

O ator não está sozinho em cena: ele é acompanhado pelo músico Tauã de Lorena, que executa partituras sonoras, inspiradas num belo blues, que ilustra os percalços de Bill tentando cumprir a missão que lhe fora dada, enquanto o próprio Gustavo cria toda a sonoplastia da peça, dos tiros ao ranger das portas até os carros que transitam pelas avenidas.
A dedicação com que Gustavo Rodrigues se joga em cena e cria uma identidade para cada personagem, mostra que esse é o trabalho mais importante de sua carreira atualmente. Um trabalho de fôlego, que a principio, parece inesgotável: a medida que a peça vai avançando, e a trama vai criando contornos mais complexos, os deslocamentos pelo espaço vão exigindo do ator maior rapidez e flexibilidade. O suor vai tomando conta do corpo e do figurino do ator, tamanho mergulho de cabeça nesse empreendimento cênico, que teria tudo para resvalar num grande fracasso, se ele não confiasse nas potencialidades técnicas que possui.
A violência retratada em cena possui um sotaque diferente do nosso, estilizado ao modo com que os seriados e as produções hollywoodianas povoaram nosso imaginário. Nesse sentido, Bill Dog 2 é um espetáculo que joga com os todos os clichês do universo underground, de uma maneira inteligente e muito bem humorada. Mais do que isso: atesta a magia que o teatro tem de nos contar uma história rica em detalhes com o mínimo de recursos possíveis: apenas um ator e uma boa trama.
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