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Uma dramaturgia de afetos / crítica do espetáculo Aquilo que Acontece entre Nascer e Morrer

  • Pedro Alonso
  • 30 de dez. de 2019
  • 3 min de leitura

Atualizado: 2 de jan. de 2020

Fabrício Moser encerrou o ano de 2019 apresentando ao público carioca seu mais recente solo: Aquilo que acontece entre nascer e morrer, que ficou em cartaz na Casa Quintal de Artes Cênicas, na Lapa, até meados de dezembro.


A dramaturgia foi estruturada a partir de uma tragédia pessoal do ator, que perdeu seus pais, e também o cunhado, num acidente de carro, numa estrada a caminho da região sul do Brasil. No ato de olhar para trás e rememorar as angústias, o sofrimento e a tristeza que o fato em si carrega, Fabrício resgata trechos de performances e de espetáculos, que foram determinantes na construção de uma postura sobre o fazer teatral e, por conseguinte, sobre a vida. Essa atitude está evidente no modo como a produção arrecadou fundos para pagar os custos da montagem, através da venda de ingressos antecipados, visto que não teve recursos oriundos de nenhum financiamento público, que não serviu de impeditivo para que o espetáculo não acontecesse.


No início da peça, Fabrício recebe os espectadores preparando uma massa de bolo. Enquanto o público decide aonde irá se acomodar, um primeiro pacto já está sendo pensado para ser posto em prática, pacto de abertura, de intromissão, de brecha e interlocução: o ator solicita a plateia que o interrompa assim que o cheiro estiver se espalhando pelo espaço cênico. O tempo de cozimento do bolo ocorre em concomitância à vivência compartilhada por todos no espaço, induzidos a discorrer sobre questões pontuais como a morte, abandono, sonhos etc. Nesse jogo do aqui e agora do acontecimento cênico, existe uma troca de experiências, de vivências, de olhares e também de silêncios, uma relação que é conduzida pelo atuante, para que a plateia possa interferir com suas memórias afetivas.



Imagem de Ricardo Martins
Imagem de Ricardo Martins


A área de atuação parece estar sobrecarregada de referências pessoais e profissionais de Fabrício, que traz para a cena os quadros pintados por ele, os interessantes guarda-chuvas vermelhos, que, segundo parece, foram utilizados na performance Caminhos; um livro que fora presente de um sujeito, praticante do Hare-Krishna, durante a apresentação do espetáculo Duo Sobre Desvios, em Curitiba, e o totem-espelho utilizado na montagem de Laura, outra investigação cênica do ator, sobre sua avó que fora assassinada pelo companheiro na década de oitenta. Talvez esse seja o experimento teatral mais autobiográfico de Fabrício, em que vida e obra estão se entrelaçando a todo instante. Todos os objetos citados possuem uma história, um passado. O espaço de atuação torna-se, portanto, um campo de reminiscências de cada trabalho, cada viagem e de cada registro particular, que precisa ser compartilhado.


O momento de maior impacto da peça é quando o acidente com o carro, na estrada, é projetado em cena. Fabrício transfere, para o corpo, toda carga de desespero e sofrimento, que não comporta em nenhuma frase articulada: um corpo caótico, atravessado pelos destroços emocionais. Reinventa, também, o enterro simbólico dos pais, “sepultando” a figura dos dois numa pequena mala com terra, ao mesmo tempo em que dança com uma bolsa d’água, simbolizando uma placenta, que Fabrício estoura para regar a gratidão e o eterno recomeço de um ciclo que nunca cessa. São imagens com as quais a plateia se identifica e se emociona, por que são vivenciadas o mais honestamente possível, por um ator que consegue emanar sinceridade e empatia na recriação de sua vida particular, conseguindo extrair poesia de momentos tão dolorosos. Somos levados, por ele, por uma via cheia de percalços e indeterminações: o corpo nu de Fabrício é atravessado pelas imagens projetadas da colisão, como se fossem estar, para sempre, cravadas em seu corpo, algo que levará consigo até o dia de sua morte, uma cicatriz.



Imagem de Ricardo Martins
Imagem de Ricardo Martins


Aquilo que Acontece entre Nascer e Morrer herda de Laura uma estética que transforma o espaço cênico numa área de pleno trânsito, ao mesmo tempo em que evidencia o valor de cada encontro e cada narrativa compartilhada no teatro. A encenação reafirma, o tempo todo, a complexidade de viver o presente e estarmos atentos para o inesperado, aquilo que jamais imaginamos que um dia talvez possa nos acontecer. Fala, por fim, de reinvenção e recriação através da arte, algo necessário em nossas vidas.


Ficha técnica


Criação e Atuação: Fabrício Moser Colaboração Artística: Cassiana LIma Cardoso, Gabriel Morais, Gabriela Lírio, Ricardo Martins, Silvana Rocco e Tato Teixiera Programação Visual: Davi Palmeira Consultoria Audiovisual: André Boneco Assessoria de Imprensa: Marrom Glacê – Gisele Machado & Bruno Morais Produção: Fabrício Moser e Gabriel Morais

 
 
 

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