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Uma dupla resistência / crítica do espetáculo Para Não Morrer

  • Pedro Alonso
  • 20 de set. de 2019
  • 2 min de leitura

Atualizado: 21 de set. de 2019

Para não morrer, solo que reestreou no Rio de Janeiro, e que ficará em cartaz, até o dia 28 de julho, na Casa de Cultura Laura Alvim, é um espetáculo que tem uma longa carreira, prêmios adquiridos e uma atriz que merece todas as nossas atenções: Nena Inoue, consagrada com os prêmios Gralha Azul (2017) e Shell (2019), ambos na categoria melhor atriz.


Baseado no livro de Eduardo Galeano, intitulado “Mulheres”, escrito pelo autor uruguaio no ano de 1997, a dramaturgia de Francisco Mallmann ganha vultos de atualidade: em cena, uma figura em forma de mulher, velha e decrépita, com o peso do tempo no corpo e na voz, relata à plateia histórias de companheiras que sofreram as injustiças de seu tempo, cada qual que pagou com a própria vida, por ter tido a atitude de gritar contra seus opressores: homens que representavam a família, a igreja e a propriedade.


A cenografia de Rui Almeida opta pela simplicidade na composição dos elementos no palco: algumas mesinhas redondas, em volta de uma cadeira central, em que a personagem passa o tempo todo sentada, tudo forrado por um imenso tecido manchado de sangue (o sangue que simboliza a morte das companheiras de luta) e envelhecido pelo tempo. Jarras e copos d’água também estão dispostos em cima das mesas, de modo que ela não precise se deslocar pelo espaço para alcançar os objetos. Esse quadro pode sugerir que a personagem não se levanta daquela cadeira nunca, que ela está sempre ali, disposta a contar seus causos a quem tiver interesse.


A iluminação, pensada por Beto Bruel, ajuda a ambientar o auditório do teatro, aclimatando a plateia, com um feixo de luz em cima desta, para que os espectadores se sintam introduzidos na enunciação. É com a plateia que a velha dialoga. Portanto, é imprescindível que seus rostos e reações devam ser vistos, não só por ela, mas também pelos demais que ali estiverem.


A direção, que ficou por conta de Nena Inoue e Babaya Morais, é extremamente rigorosa, centrada na composição dos gestos e na técnica com que ela elabora partitura de movimentos mínimos. Nena traz para o palco a materialização da ancestralidade latinoamericana: a caracterização dos braços e pernas distorcidos, a boca torta, a fala em derrame e a risada característica, que lembra uma entidade, em conjunto com o figurino de Carmen Jorge, que encobre o corpo da atriz com camadas e volumes de cabelos, formando um corpo sem vaidades e atravessado pelo tempo, insinuam a construção de uma figura quase mitológica, que acompanhou, junto com a evolução das mentalidades, a ousadia com que a luta feminista peitou o patriarcado.


Na iminência de uma crise gravíssima porque passa todo um sistema cultural brasileiro, principalmente com a tomada do pensamento religioso na coisa laica, fazer teatro e falar de mulheres que lutaram como uma Marielle Franco é resistir duplamente.


Rio de Janeiro, 24 de julho de 2019.


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