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Uma entrega verdadeira aos sertões das Gerais / crítica do espetáculo Grande Sertão: Veredas

  • Pedro Alonso
  • 19 de set. de 2019
  • 4 min de leitura

Atualizado: 24 de set. de 2019

A crítica que vocês vão ler foi escrita quando o espetáculo de Bia Lessa fez temporada no Centro Cultural Banco do Brasil, em janeiro de 2018. A montagem voltou em cartaz, agora em setembro, e cumpre agenda no SESC Copacabana, até 27 de outubro.


Grande Sertão: Veredas é a mais recente empreitada teatral de Bia Lessa, que está em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil. Esse desafio de levar para os palcos a obra prima de Guimarães Rosa é encarado com a experiência de quem já extraiu, das páginas da literatura mundial, visualidades de romances de Virginia Wolf (Orlando), Mariana Alcoforado (Cartas Portuguesas), Julio Verne (Viagem ao Centro da Terra) e Robert Musil (O Homem sem Qualidades). Nesse espetáculo, a encenadora provoca a sensibilidade do espectador, optando por contar a saga de Riobaldo e Diadorim utilizando-se de pouquíssimos elementos em cena.


O espaço de atuação ganha forma de pista por onde transitam jagunços, prostitutas, capitães do mato, personagens dos mais diversos matizes, além dos animais e da natureza árida das Gerais, que são criados e recriados pelo coro à medida que a narrativa de Riobaldo vai adentrando nas questões de ordem mística, filosófica e existencial.


A gigantesca estrutura, montada no foyer do CCBB, permite que a dinâmica das ações possa se intercalar espacialmente, possibilitando, ao espectador, outros modos de ler o espetáculo: os atores escalam e atuam pelos andaimes, verticalizando o olhar e a trama, sintetizando uma atitude de explorar possibilidades não convencionais e arriscadas. Outros riscos, que fogem do âmbito ficcional, podem ser apreendidos na leitura do espetáculo.


O primeiro é a entrega desmedida dos atores à empreitada, que construíram imagens e sugeriram possibilidades desnudando-se de artifícios interpretativos corriqueiros a que poderiam recorrer, mas que seria impossível sustentar sem a verdade que aquele campo cruel e sangrento exige. O desnudamento não está apenas visível no conjunto da montagem, mas está para além dele.


O segundo risco é da própria encenadora, que retira o único romance de Guimarães Rosa, das prateleiras das estantes, e o concretiza num momento histórico muito problemático para a cultura da nossa cidade, em que as verbas são escassas, os editais não são pagos e exposições de artes visuais são censuradas por gestores que demonstram total ignorância a respeito. Parece que a peça quer nos dizer que estamos todos no mesmo e violento sertão descampado, entregues à própria sorte. No entanto, é preciso ter coragem para resistir e continuar em frente, como faz Riobaldo, quando se depara com certa dificuldade de reordenar os fatos e narrar os acontecimentos.


Os personagens vestem-se majoritariamente de preto. A iluminação trabalha com tons mais voltados para o ocre e o neutro, aumentando e diminuindo sua potência para estabelecer sequências de dramaticidade e impacto, como o desenho de luz que simula um helicóptero em sobrevoo, induzindo ao caos na sequência da chacina dos jagunços.


Microfones estão espalhados por toda estrutura da arquibancada. Fones de ouvido são colocados nas cadeiras, porque o espaço escolhido para a representação não possui nenhuma acústica. Ao se apropriar do suporte, captamos a música de Egberto Gismonti, que ajuda a transformar a ambientação em local seco e hostil. A paisagem sonora possui intervenções singulares na condução da trama, numa mixagem que evoca o cavalgar dos cavalos, o coaxar dos sapos, os tiros, os gritos, o nadar na lagoa, o remar da jangada e demais aspectos auditivos.



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Caio Blat é Riobaldo, sujeito do sertão que narra sua saga de enfrentamento e sensibilidade ao questionar o sentimento amoroso que nutre por Diadorim. Impossível não elogiar sua performance na montagem. Ele é dono absoluto da cena, conduzindo com furor, potência e densidade os caminhos trilhados por seu personagem. Em momento algum, sua força se esvazia. O que se afirma de Caio pode ser estendido aos outros atores que compõem o elenco, embora um ou dois destoem dos demais na energia da fala. Caio divide com Luisa Arraes os momentos de rememoração de um Riobaldo bem jovem. Nesse sentido, eles formam dois lados de uma mesma moeda, evidenciando a complexidade de um indivíduo em constante conflito com Deus e o Diabo. Luiza Lemmertz dá vida a Diadorim, sujeito de pouca fala, misterioso e introspectivo, mas que não abre mão da companhia do amigo amado.


A energia que se desprende da atuação impacta pela fluidez com que conseguiram equilibrar duas dificuldades iminentes na montagem: a difícil verborragia sertaneja, construída por Rosa, e os incessantes movimentos dos corpos, que adquiriram potência máxima de comunicabilidade, simulando bois, vacas, cardumes, sapos, pássaros e outros tipos característicos. Bonecos de pano preenchem a cena em instantes de alto impacto estético, em que a violência irrompe sua face mais cruel e todos os jagunços são amontoados na área de atuação.


Assistir Grande Sertão: Veredas nos faz refletir sobre a violência a que estamos inseridos todos os dias. Também nos coloca em comunhão com homem simples, que possui invejável sabedoria da vida, embora afirme que de nada sabe. É um espetáculo em que a verdade da atuação dos atores contamina a plateia, levando-nos à emoção nos vários momentos de profunda intensidade. É uma ode ao corpo e às inúmeras possibilidades de criação.


Rio de Janeiro, 04 de fevereiro de 2018.


Publicado originalmente na página do Grupo de Estudos Comparados de Literatura e Cultura (GECOMIC/UFRJ)

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